Vol. 2 Núm. 9 (2024): Revista (Re)Definições das Fronteiras - Arco Central

Este volume da Revista (Re)Definições do Brasil se dedica a investigar as intrincadas questões sociais, econômicas e de segurança que permeiam o Arco Central do Brasil, com um enfoque especial nas dinâmicas de fronteira. Através de uma seleção rigorosa de artigos, o volume oferece uma análise aprofundada das ameaças e desafios que impactam tanto a segurança pública quanto a gestão governamental na região.
Editorial
A semântica da palavra fronteira perpassa a história da humanidade. Limite até onde se deve ou se pode chegar ou, que deva ser ultrapassado. Muros, cercas e fortalezas demarcam linhas e marcos arbitrários. Rios, montanhas e cordilheiras determinam divisas “naturais”. Até onde a vista alcança não tem sentido para a Geopolítica.
O Arco Central, que compreende as fronteiras do Brasil com Paraguai e Bolívia, é um exemplo paradigmático de como os limites podem ser mais que barreiras. Esta região concentra um dos mais importantes potenciais de integração regional e conexões bioceânicas, articulando infraestrutura rodoviária, ferroviária e hidroviária. A Hidrovia Paraná-Paraguai e o Rio da Prata permitem o escoamento de produtos até os oceanos Atlântico e Pacífico, tornando a região estratégica para o comércio internacional (RETIS, 2005; PDFF, 2005).
Em 1750, Alexandre de Gusmão propôs o princípio do “uti possidetis” (os que de facto ocupam um território possuem direito sobre ele) para subsidiar o Tratado de Madri em substituição ao de Tordesilhas. Somado a este, em 1777, Portugal e Espanha firmam também o Tratado de Santo Idelfonso e, desta maneira, promovem a efetiva separação dos territórios de suas colônias na América (ENGEL, 1999).
De acordo com o Ministério das Relações Exteriores (MRE) do governo brasileiro, as fronteiras vigentes na atualidade foram definidas durante os trabalhos da Comissão de Inspeção de Fronteira, criada em 1926 e liderada pelo Marechal Rondon; as Comissões de Limites (1927-1973) e pelas posteriores Comissões de Demarcadoras de Limites (1973-2025) (ENGEL, 1999). “Pela arbitragem ou pelo acordo direto, sem derramar uma só gota de sangue, os diplomatas brasileiros estabeleceram as nossas fronteiras com base em documentação cartográfica, na história e no princípio do "uti possidetis" ou direito de posse” (GRUPO RETIS, 2012).
A Primeira Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (PCDL), sediada em Belém (Pará), está encarregada das atividades nas fronteiras do Brasil com Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e a região ultramarina francesa. A Segunda Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (SCDL), sediada no Rio de Janeiro, está encarregada das atividades nas fronteiras do Brasil com o Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia (MRE, 2025 e 2025a).
Historicamente, a comissão de demarcação de limites liderada por Cândido Mariano da Silva Rondon, no início do século XX, foi crucial para consolidar os territórios e estimular o povoamento das regiões fronteiriças. O legado de Rondon não apenas assegurou a delimitação diplomática, mas também promoveu a compreensão da fronteira como espaço de encontro e cooperação entre povos (Vergara, 2013).
Vergara (2013), recuperou a máxima “demarcar é aproximar” do Coronel Ivonilo Dias Rocha, chefe da PCDL nos anos 1970, destacando ainda que para ele “era necessário superar o conceito tradicional de fronteira como barreira, mas perceber o limite territorial como uma oportunidade de aproximação entre povos e culturas.
É raro encontrar situação similar no mapa mundi ao tema das fronteiras brasileiras. Seja pela extensão e adensamento de população em terra (16.886 km, 9,4 milhões de habitantes em 588 municípios) e em sua face atlântica (7.491 km, 57 milhões de habitantes em 281 municípios), seja pela quantidade de países limítrofes (10 dos 12 outros países na América do Sul) (IBGE, 2022).
Organizar uma política que resulte em atuação efetiva tem sido o desafio do Estado brasileiro que, muitas vezes, não encontra sinergia nas políticas dos entes federados que constituem o território da faixa de fronteira e tampouco nos países vizinhos. E o lema do dividir para governar, ou minimamente compreender para organizar para a valer como métrica.
No entanto, o Arco Central enfrenta desafios contemporâneos significativos. Crimes transnacionais, como o contrabando de mercadorias e o tráfico de drogas, exploram as vulnerabilidades de uma região marcada por infraestrutura insuficiente e fiscalização limitada. Essas dinâmicas complexas são ainda mais complicadas pela necessidade de integrar sistemas de segurança entre países com legislações e prioridades distintas (IDESF, 2021).
As políticas públicas voltadas ao desenvolvimento regional, como o PDFF, reconhecem o potencial produtivo e sociocultural do Arco Central, buscando superar as barreiras burocráticas e logísticas. Projetos como a ferrovia bioceânica e o fortalecimento da Hidrovia Paraná-Paraguai são fundamentais para a integração efetiva e o desenvolvimento regional sustentável.
Este volume apresenta estudos de caso que ilustram tanto os sucessos quanto os entraves que marcam o Arco Central, convidando o leitor a refletir sobre como construir uma fronteira que seja, ao mesmo tempo, segura, produtiva e integrada.
Nesta edição dedicada ao Arco Central, iremos nos deparar com estudos de caso que ilustram os fenômenos em curso em tal recorte territorial e, de que maneira, as políticas públicas estão integrando, ou não, as redes políticas, econômicas, sociais e culturais (nacionais e regionais) a fim de desintegrar a redes relacionadas às commodities ilícitas que, por sua vez também detêm estruturas políticas, econômicas, sociais e culturais próprias.
Ademais, por se tratar do Arco que oferece a maior potencialidade de integração regional e bioceânica por meio da implantação de infraestruturas de conectividade viária, ferroviária e principalmente hidroviária por meio da Hidrovia Paraná-Paraguai e rio de La Plata ao Oceano Atlântico e ao Pacífico a partir da integração multimodal entre Brasil, Paraguai, Argentina e Chile, todos as agendas de desenvolvimento sócio econômico, ambientais, de segurança pública e de defesa se imiscuem em uma interdependência complexa de variáveis.
Serão apresentados casos de sucesso assim como de negligências e de distintos graus de complexidade burocrática que inviabilizam a cooperação e o enfrentamento dos crimes transfronteiriços.
Para encerrar essa apresentação, convidamos à leitura de uma passagem dos transcritos de Alexandre de Gusmão, quando da elaboração da proposta do Tratado de Madri aos espanhóis.
Para Alexandre de Gusmão era imprescindível ampliar o território da colônia portuguesa no sentido Leste Oeste e para tanto argumentava que
...o muito que insistimos pelas Sete Aldeias do Uruguai, não insistimos verdadeiramente pelas Aldeias e, sim pelo terreno... É que no Prata ficarão os espanhóis com maior poder, e, nos convém equilibrá-lo, alargando-nos para o interior, e formando naquela parte uma província poderosa e com êsse fim se vão mandando continuamente para ela grande número de casais das ilhas , dos quais, feito que seja o ajuste, poderão passar bastantes a ocupar o sítio das Aldeias do Uruguai, se ficarem sem índios; e dentro em breves anos poderá tôda aquela Província achar-se povoada, em tal estado de fôrças, que nada receie dos Espanhóis.”... “Pelo contrário da parte superior do Rio Amazonas não fará falta sensível o que cedermos tendo naquela Região tal extensão de terra, que em muitos séculos a não poderemos povoar, nem aos Espanhóis fará grande proveito o que lhes largarmos; porque todos os estabelecimentos que sôbre aquele rio tiverem, estarão sempre à nossa discrição pela vantagem que ali nos dá a facilidade da comunicação com o pôrto do Pará, e pela fraqueza em que êles sempre hão de continuar por não poderem ter socôrro e generos mais que do Quito, com o obstáculo que interpõem a aspereza dos Andes, tal, que para os que moram na, Província de Mainas é o empreender uma jornada a Quito o mesmo que para os Europeus ir à Índia. (GUSMÃO, Apud CORTESÃO, 1950).
Esse ainda é o tamanho do Brasil – “tal extensão de terra, que em muitos séculos a não poderemos povoar”. Boa leitura.